quarta-feira, 14 de setembro de 2011

ALEGRIA AO JANTAR

Tarde cinzenta, o crepúsculo anuncia-se, o garoto quebra aqui, conserta ali, olha o portão, junta molas, serra madeiras, guarda o pião na caixa de ferramentas, volta os olhos ao portão, fronteira angustiante da sua limitação, enxuga a testa, assoa o nariz. O cachorro late e abana o rabo. O menino corre até o esqueleto de ferro, visualização além fronteira e nova frustração que consome a expectativa infantil. Vai tomar banho, menino! Grita a voz das proximidades do tanque de lavar roupas, ordenando-o. Resmungos e barulhos da serrotagem misturam-se às buzinas dos carros lá fora e às conversas dos transeuntes. Só entro quando terminar! Resmunga mais uma vez e olha para o simples relógio de visor partido, com cuidado para não pingar nele o suor da face e afogá-lo, mira o céu e vê tímidas estrelas despontando, sente o cair do sereno, certifica-se do tempo e concentra-se novamente na sua atividade. Psiu! Assusta-se, derruba o martelo e corre as vistas ao quadrado imperativo com tanta empolgação que, um sorriso espontâneo surge do seu rosto esperançoso, desmanchando em seguida com rara frieza, que o amiguinho recomenda voltar depois. Não! Entra, pode entrar. Tá zangado comigo? Pergunta o visitante não esperado. Segura aqui? Pede ao ajudante indesejado no momento, sem dá importância ao seu questionamento, estende-lhe um pedaço de madeira para ser pregada, mira o prego, olha pra rua, erra a martelada, dá outra e acerta, mais uma e levanta a cabeça, vasculha a fronteira, sorri para o parceiro de traquinagens e fabricações e pergunta-lhe as horas. O aprendiz consulta o seu objeto camaleônico e exuberante, portador de um vasto guarda roupa em pulseiras de sete cores, uma veste para cada ocasião, e responde, são seis e trinta. Já vai tomar banho? Pergunta, preocupado com o fim do aprendizado. Não! Só entro depois que terminar. Responde com determinação de mestre. Golpeia mais uma vez com sua ferramenta, e o prego relutante em se infiltrar na pele de madeira, enfim integra-se ao emprestado corpo. Meu pai me trouxe um ferrorama hoje, brinquei com o trem por uns cinco minutos, mas o diacho brinca só, fica rodando nos trilhos até a gente ficar tonto. No comercial da TV sem cor, ele parecia ser tão legal. Desabafa o aluno, freqüentador da oficina improvisada e quase sua segunda casa. Ei! Tá me ouvindo? Hum... Sua patinete tá quase pronta, só faltam os rolimãs traseiros, diz o Gepeto da periferia. Oba! Amanhã eu consigo os dois que faltam e nós vamos descer a rua da ladeira asfaltada, depois da pelada na quadra da escola, é claro! Isso sim é que é diversão. Empolga-se... Ô! O que você tem? Parece triste e chateado, nem parece que o velho volta hoje. Indaga, preocupado com o amigo e fabricante de seus melhores brinquedos. Vamos tirar os rolimãs da minha super máquina agora e colocar na sua patinete pra testá-la? Desconversa o exímio montador de alegrias artesanais, antes de dar outra olhadela nas frias grades. Vem tomar banho menino! Grita uma voz rouca e triste do interior da casa. Desta vez sem resmungar, o garoto entra correndo e depois de alguns minutos, sai, cata as suas ferramentas, lamenta-se ao amigo e aluno com um forte abraço. Coração afogado! Chuvas de lágrimas embaçam o seu último olhar expectativo ao portão. Seu pai não mais voltará do leito hospitalar. Fim das conversas e brincadeiras tão saboreadas ao jantar.
Por: Moisés Carneiro – 28/08/2010

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